Foi entre alguma emoção e muito sentido do dever cumprido que Carlos Ferreira , cirurgião do Hospital da Luz Lisboa e cirurgião de guerra da Cruz Vermelha Internacional, lançou o livro onde relata os casos clínicos, a aprendizagem e a experiência pessoal e médica que adquiriu com as muitas missões que fez nos últimos anos, nos piores cenários de guerra do mundo: Sudão do Sul, República do Congo, Iraque, Iémen, Ucrânia e Faixa de Gaza. Em todos estes lugares, como conta em ‘Cirurgia de guerra e medicina humanitária’ , conheceu o inferno e descobriu pessoas inspiradoras. O lançamento da obra foi feito a 16 de abril, no Hospital da Luz Lisboa, com uma apresentação do autor sobre a sua última missão com a Cruz Vermelha Internacional em Rafah, na Faixa de Gaza, precisamente há um ano, quando a guerra naquele território já tinha atingido milhares de pessoas. Um relato impressivo e clínico de uma experiência feita sob condições muito difíceis e hostis, mas a salvar vidas todos os dias. "Existem mais de 120 conflitos armados no mundo, que atingem 35 países. Triplicou a quantidade de guerras desde 2000 e a guerra é hoje considerada um problema de saúde publica, com tudo aquilo que implica de disrupção nos cuidados básicos, mais doenças, fome… Isto acontece sobretudo nos países mais pobres, onde o que existe já é o mínimo." "A primeira vítima da guerra é o sistema de saúde. Os hospitais em Gaza já foram atingidos por bombardeamentos. A maior parte das infraestruturas já não existe. O equipamento e a gestão também não existem. E o pessoal trabalha em condições muito difíceis. Quem sobrevive em Gaza, vive no inferno na Terra. É uma população que está prisioneira naquele território, que passa fome, que não tem água, que não tem cuidados médicos. É uma crise humanitária, emergente." " A missão que eu integrei era dirigida pelo Comité da Cruz Vermelha Internacional para o European Gaza Hospital – um hospital diferenciado com 232 camas, que, antes da guerra, servia uma população de cerca de 400 mil pessoas." "Sendo o hospital uma safe zone, quando eu lá estive estavam dentro do perímetro do hospital entre 30 a 40 mil pessoas e, dentro do próprio edifício, 7 mil pessoas. Viviam em tendas e em condições extremamente difíceis, cozinhavam lá dentro, dormiam todos na mesma cama hospitalar… Todos os dias, o hospital era vigiado por drones. Os bombardeamentos eram diários. O hospital tremia todos os dias. O próprio Hamas lançava rockets lá de dentro ." " Chegavam ao hospital 700 doentes por dia. A minha equipa cirúrgica tratava os casos mais difíceis e, depois, havia algumas equipas volantes de expatriados que estavam lá dois ou três dias para ajudar na enfermaria." "A minha equipa era composta por 10 a 12 pessoas. Dormíamos num corredor do hospital, que tinha uma casa de banho única. Com 30 mil pessoas a viver lá dentro, as noites eram cheias de um barulho ensurdecedor. Era muito complicado descansar assim." "Tínhamos a responsabilidade de todo o bloco operatório do serviço de urgência e da enfermaria do pós-operatório. E, não se esqueçam: entravam todos os dias 700 pessoas. E isso é que era complicado. Porque tínhamos de fazer triagem. Ora, neste contexto, fazer a triagem implica ter de decidir quem vamos operar – operávamos à volta de 15 a 20 doentes por dia – e quem vamos abandonar. " "Todas as guerras são guerras contra as crianças. As crianças são as principais vítimas e, infelizmente, em Gaza a quantidade de crianças que tratei foi muito acima do que era esperado – quase metade dos meus doentes foram crianças." "Para ser um cirurgião de guerra, obviamente temos de ter competências cirúrgicas, para resolver todas as situações que nos aparecem à porta e salvar a maior quantidade possível de pessoas. Mas nós não estamos minimamente equipados nem treinados para o que aparece. É uma cirurgia com muitos desafios, mas com muito sucesso a salvar vidas. De alguma forma, ajudar estas pessoas a recuperar, ter o privilégio de dar-lhes uma vida melhor e, principalmente, conhecer pessoas tão inspiradoras é uma satisfação." "Como cirurgiões, como médicos, devemos tentar criar uma vida melhor. Ser um cirurgião é uma missão: ensinar, curar, ajudar. Mas ser cirurgião de guerra é um desafio intenso e muitas vezes assustador, também. É algo que nos puxa até ao limite. Um grande desafio, com sensações únicas, mas que faz com que cada momento seja único." "A prática da medicina é um compromisso com os nossos doentes, a equipa, o hospital, com todas as pessoas com quem praticamos a nossa atividade . No fim de cada missão, às vezes sentimos muita frustração porque regressamos a casa e deixamos lá doentes, colegas… Mas, ao mesmo tempo, saber que reconhecem o que fizemos e a forma agradecida com que nos tratam é extraordinário e muito difícil descrever em palavras ." ‘É um privilégio ter-te na nossa equipa’ Jorge Paulino , diretor do serviço de cirurgia do Hospital da Luz Lisboa, fez um resumo do livro – em que o autor faz também uma resenha histórica da medicina e da cirurgia de guerra, desde o Antigo Egito e a civilização Romana até aos dias de hoje –, destacando depois algumas histórias pessoais e clínicas que Carlos Ferreira relata na obra. Paulo Simões, presidente da Secção Sul da Ordem dos Médicos e convidado especial deste lançamento, chamou a atenção, por seu turno, para o facto de a OM ter criado um gabinete para apoiar médicos que apoiam e se envolvem em situações de guerra. Isabel Vaz, CEO da Luz Saúde, e Rui Maio , diretor clínico do Hospital da Luz Lisboa, usaram também da palavra para agradecerem a dedicação e o trabalho de Carlos Ferreira, chamando a atenção para o facto do cirurgião ser o mais experiente nesta área em Portugal. “É um privilégio ter-te na nossa equipa”, resumiu Rui Maio. Na foto em baixo, Rui Maio, Carlos Ferreira, Jorge Paulino e Paulo Simões.